segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Dez mandamentos para a Justiça




1 O caso 'Freeport' é o ponto sem retorno. Precisamos de carregar no botão de 'reiniciar'. Precisamos de refundar institucionalmente a arquitetura da justiça e a relação entre os magistrados e o poder democrático. Ou seja, precisamos de refundar a III República. Os regimes que não mudam acabam por morrer, e este regime está a morrer em câmara lenta diante dos nossos olhos. Quem tem a coragem para carregar no 'reiniciar'?

2 Antes das mudanças institucionais propriamente ditas, a nossa elite intelectual e política tem de revolucionar a forma como perceciona a justiça. E esta 'revolução intelectual' perante a justiça é, em si mesma, uma mudança de atitude face à própria ideia de democracia. Neste sentido, é urgente que a cultura política portuguesa absorva o seguinte: a democracia liberal não é apenas o jogo eleitoral entre partidos; pensar a democracia liberal implica refletir constantemente sobre a justiça, e sobre a relação entre justiça e poder democrático. A política de uma república engloba a justiça. Aliás, desde os federalistas americanos, uma república é a articulação entre o sistema democrático e/ou partidário (poder vertical) e o sistema judicial (poder horizontal).
3 Por outras palavras, a justiça é um assunto político de primeira grandeza. Na prática, isto determina que a justiça não pode continuar a ser um tema 'técnico' que acaba sempre nas mãos dos 'técnicos' (juízes, procuradores, advogados e professores de Direito). A organização da justiça e a Constituição não são propriedades exclusivas dos catedráticos deDireito, dos magistrados e dos juristas. Quem escolhe a organização da justiça é a comunidade política (i.e., todos nós), e não os 'técnicos' do Direito. Em suma, o debate em torno da justiça não pode continuar a ser uma coutada das corporações judicias.

4 Dentro desta perspetiva política, o problema principal do nosso sistema judicial não é a falta de meios humanos e/ou materiais. O problema está na 'governança' da justiça, isto é, está no funcionamento do sistema, nomeadamente na ausência de responsabilização de juízes e procuradores. Otal 'sistema' (i. e., procuradores e juízes) vive em autogestão, sem transparência, sem uma fiscalização digna desse nome, pois encontra-se fora do circuito de responsabilização democrática (accountability).

5 A tensão entre o poder judicial e o poder democrático é umamarca central de todas as democracias liberais. E esta tensão não tem resolução definitiva; em qualquer democracia liberal, existe uma constante negociação entre a autonomia dos magistrados e a necessidade de prestação de contas democrática desses magistrados. Ora, em Portugal, essa tensão foi completamente anulada em favor da autonomia completa dos magistrados. Onde deveria existir 50% de autonomia contrabalançada por 50% de accountability, existe 100% de impunidade corporativa. Isto tem de acabar.

6 Para começo de conversa, os sindicatos de magistrados devem ser extintos. Titulares de cargos de soberania não podem ter sindicatos. A soberania não faz greve contra a soberania, logo, um sindicato de magistrados é, em si mesmo, uma contradição em termos. Um inenarrável oximoro institucional. Por outro lado, convém relembrar que os atores institucionais do Estado de Direito (magistrados e polícias) não são funcionários do estado social (enfermeiros, professores, etc.). Quem defende o Estado de Direito não pode ter organizações sindicais e corporativas. Ponto final.

7 Após a extinção dos sindicatos, devem ser tomadas outras mudanças institucionais (e não meras medidas técnicas e burocráticas). E tenho de frisar a expressão 'mudanças institucionais'. Porque o problema não está nas pessoas que ocupam os cargos. O problema está nos cargos em si mesmos. Não podemos continuar a discutir pessoas. Esse 'pessoalismo' não leva a lado nenhum. Temos de desenvolver um 'institucionalismo' na forma como abordamos a justiça. Depois da saída de Souto Moura, muita gente pensou que tudo seria diferente com Pinto Monteiro. Ora, nada mudou. E nada vai mudar enquanto não mudarmos as regras institucionais que estão a montante dos 'Soutos Moura' e dos 'Pintos Monteiro'.

8 De facto, o procurador-geral da República (PGR) é um cargo com pouco poder. No interior do Ministério Público (MP), os procuradores - protegidos pelo sindicato - vivem em completa autogestão. E, atenção, esta fraqueza do PGR é uma consequência de algo que nunca é discutido: a escassa legitimidade democrática do PGR. Neste sentido, é urgente reforçar a accountability do PGR. Como? O PGR deve passar a ser indicado pelo Presidente, e, após essa indicação presidencial, o candidato a PGR deve ser avaliado e validado (ou não) pela Assembleia. O atual processo de escolha do PGR é tudo menos transparente e responsabilizador. Tal como está, o processo é opaco, não passando de um mero jogo de bastidores. O governo escolhe e o Presidente aprova essa escolha, sempre em circuito fechado. E este é o problema: nunca se faz uma auscultação pública do candidato. O candidato a PGR nunca é avaliado. Antes de ele tomar posse, nunca sabemos quais são os seus méritos e as suas opiniões; nunca sabemos o que pensa fazer nos seis anos de mandato. Esta opacidade tem de acabar. Ocandidato a PGR tem de ser duramente avaliado na Assembleia. Os deputados têm de submeter o candidato a um intenso escrutínio, devidamente observado pelo público e pelos media. Mais: a Assembleia deve ter a possibilidade de negar o candidato proposto pelo Presidente (que assim teria de indicar outro nome). UmPGR realmente poderoso, e com real autoridade dentro do MP, só pode nascer de uma dura e legitimadora avaliação pública e mediática.

9 A falta de escrutínio sobre os juízes é o outro grande problema da justiça. Tal como os procuradores, os juízes não são avaliados por entidades exteriores à sua própria corporação. Resultado: o Conselho Superior da Magistratura (CSM) avaliou 97% dos juízes com a classificação de "bom" e "muito bom". É confrangedor cruzar estes 97% de 'juízes geniais' com os atrasos dos nossos tribunais. Em Portugal, é quase impossível reaver uma dívida pela via legal, mas o CSM considera que 97% dos nossos juízes não têm defeitos. É urgente furar esta nomenclatura corporativa que é alheia ao mérito e à prestação de contas. No atual statu quo, o critério para a ascensão dos juízes não é o mérito, mas sim a antiguidade. Ou seja, os juízes sobem nas carreiras como se fossem meros funcionários públicos. Isto não é admissível num Estado de Direito. E, se queremos acabar com este estado de coisas, temos de reformar o CSM. Este órgão necessita de maior legitimidade democrática, isto é, os seus membros devem passar a ser nomeados, em exclusivo, pelo poder democraticamente eleito (Assembleia e/ou Presidente). Os juízes não podem nomear outros juízes para o CSM. Isso não faz sentido, porque os juízes nomeados vão, depois, avaliar os juízes que nomeiam. Além disso, o CSM deve ter uma abertura profissional, ou seja, deve abrir-se a não-magistrados. A justiça é demasiado importante para ficar exclusivamente nas mãos dos magistrados. Neste ponto, o modelo espanhol (Consejo General del Poder Judicial- CGPJ) pode ser um modelo a seguir. Na atual arquitetura, o CSM tem dezoito membros: o seu presidente é o presidente do Supremo, o seu vice-presidente é um juiz do Supremo; o Presidente da República nomeia dois membros, a Assembleia nomeia sete, e os juízes nomeiam outros sete. Em Espanha, o CGPJ tem vinte membros, doze magistrados e oito não-magistrados. E todos (repito, todos) são nomeados pelo parlamento espanhol. Em Portugal, podemos seguir este modelo, porque garante superior legitimidade democrática, e evita cegueiras corporativas. Por outro lado, ao incluir pessoas que não são magistrados, este modelo abre omundo da justiça ao ar que se respira cá fora, na vida real.

10 O mandamento da desilusão: a nossa elite não discutirá estas questões institucionais, e vai continuar nas trocas de ódios pessoais).



Texto publicado na edição do Expresso de 28 de Agosto de 2010 por Henrique Rapooso

Ate um dia destes gente boa

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